Eis parte da sentença do juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3ª Vara Criminal de Palmas (Tocantins), que deu liberdade a dois cidadãos presos, acusados de roubo de duas melancias.
Fez tanto sucesso que a Escola Nacional de Magistratura incluiu o despacho do meritíssimo, na última sexta-feira, em seu banco de sentenças:
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Gandhi, o direito natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de colocar os indiciados na universidade do crime (o sistema penitenciário nacional).
Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o Consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia. Poderia dizer que George W. Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam privação na Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo?
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo.”
Publicado na “Tribuna da Imprensa”, caderno “Tribuna Bis”, de 04/07/2006, página 2.