Sempre que respondo a alguém que sou psicanalista, inevitavelmente vem a pergunta: “E o que é a psicanálise?” Os mais sabidos, que j á ouviram ou leram sobre o assunto, dispensam introduções e vão logo ao exame de posições. “E qual é a linha que o senhor segue?” Me dá logo vontade de dizer que prefiro as curvas às retas – no que não estaria sendo infiel ao espírito da psicanálise, onde a curva é sempre o caminho mais curto entre dois pontos. Mas sei que não entenderiam, pois o que querem saber é se sou freudiano, kleiniano, bioniano, junguiano, lacaniano, etc, etc. Acontece que este não é o meu jeito. Preferindo as curvas às retas, sigo o conselho de Guimarães Rosa: só dou respostas para perguntas que ninguém nunca perguntou. E assim, meio num estilo oriental, meio num estilo evangélico, conto uma estória:
“Era uma vez um príncipe de voz maravilhosa que encantava a todas as criaturas que o ouviam. Seu canto era tão belo que seduziu até a bruxa que morava na floresta negra e que por ele também se apaixonou. Mas, diferente de todos os outros, que se sentiam felizes só de ouvir, ela resolveu cantar também. Que lindo dueto faremos, ela pensou. E logo se pôs a cantar. Acontece, entretanto, que bruxas não conseguem cantar afinado. Bastava que ela abrisse a boca para que dela saíssem os sons mais bizarros, que soavam como o coaxar de sapos e rãs. A vaia foi geral. A bruxa se encheu de uma inveja raivosa e lançou contra ele o mais terrível dos feitiços: Se não posso cantar como você canta, farei com que você cante como eu canto. E o príncipe foi transformado num sapo. Envergonhado de sua nova forma ele fugiu e se escondeu no fundo da lagoa, onde moravam os sapos e rãs. Ele ficou em tudo parecido aos batráquios. Menos numa coisa. Continuou a cantar tão bonito quanto sempre cantara. Mas desta vez quem não gostou do canto do novo sapo foram os sapos e as rãs que só sabiam coaxar. O canto novo soava aos seus ouvidos como coisa de outro mundo, que perturbava a concordância de sua monotonia sapal. Severos, advertiram: Quem mora com rãs e sapos tem de coaxar como rãs e sapos. O príncipe-sapo fez cessar o seu canto e não teve alternativas: teve de aprender a coaxar como todos os outros faziam. E tanto repetiu que acabou por se esquecer das canções de outrora. Não, não se esqueceu não… Porque, quando dormia, ele se lembrava e ouvia a música antiga proibida que continuava a se cantar dentro dele. Mas quando ele acordava, se esquecia. Mas não de tudo. Ficava uma saudade indefinível. Saudade, ele não sabia bem de quê. Saudade que lhe dizia que ele estava longe, muito longe do lar…”
Este é o resumo da psicanálise, tal como eu a entendo. É uma estória em que se misturam o amor, a beleza e o feitiço do esquecimento. Decepcionaram-se? Esperavam nomes famosos, conceitos complicados – e ao invés disto eu conto uma estória de fadas. Palavras para fazer as crianças dormirem, dirão. Mas eu acrescento: É para fazer os adultos acordarem … A psicanálise é uma luta para quebrar o feitiço da palavra má que nos fez adormecer e esquecer a melodia bela. É um ouvir atento de uma canção que só se ouve no intervalo do silêncio do coaxar dos sapos, e que nos chega como pequenos e fugazes fragmentos desconexos. É uma batalha para nos fazer retornar ao nosso destino, inscrito nas funduras do mar da alma.
Li os clássicos. Mas foi pela palavra dos anônimos contadores de estórias de encantamento e no encantamento da palavra dos poetas que a letra morta ficou coisa viva. Melhor do que eu, diz estes segredos do corpo e da alma, Fernando Pessoa. Leia estes versos. Mas leia devagar. Leia de novo. É do nosso mistério que ele fala. É o nosso mistério que ele invoca: Cessa o teu canto! Cessa, que enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e ouvi-a no mesmo tempo e diferentes juntas a cantar E a melodia que não havia se agora a lembro faz-me chorar.
E ele pergunta: Foi tua voz encantamento que, sem querer, nesse momento vago acordou um ser qualquer alheio a nós que nos falou?
Será isto? Em nós mora um outro? Nos interstícios do coaxar, uma canção? Que outro é este? Que anjo, ao ergueres a tua voz, sem o saberes, veio baixar sobre esta terra onde a alma erra, e com suas asas soprou as brasas de ignoto lar?
Mora em nós um outro que não se esquece da nossa verdade…
Alguns pensam que psicanálise e poesia são coisas de loucos. Os sapos e as rãs, ao ouvirem as canções do príncipe poeta, só poderiam ter dito: É poeta! É louco! … E trataram de cura-lo, educando-o para a realidade. Para eles ser normal é coaxar como todos coaxam. Mas a alma, em meio à ruidosa monotonia da vida, continua a ouvir uma voz que vem nos intervalos. Continua a chorar ao ouvir uma melodia que não havia. Continua a ouvir a fala de um estranho que mora em nós, e que nos visita em sonhos.
Continua a ser queimada pelas brasas da saudade de um lar esquecido, do qual estamos exilados.
É bem possível que os sapos e as rãs vivam mais tranqüilos. Para eles todas as questões já estão resolvidas.
Mas existe uma felicidade que só mora na beleza. E esta a gente s ó encontra na melodia que soa, esquecida e reprimida no fundo da alma