Marie Ragghiandi
Eu tinha dez anos de idade quando minha mãe teve paralisia, causada por um tumor na espinha dorsal. Antes disso ela havia sido uma mulher vibrante e vigorosa, de tal maneira ativa que a maioria das pessoas achava impressionante.
Mesmo quando era pequena, eu ficava admirada com suas realizações e por sua beleza. Porém, quando tinha trinta e um anos, sua vida mudou. Assim como a minha.
Do dia para a noite, parecia, ela passou a ficar deitada de costas em uma cama de hospital. Um tumor benigno a havia incapacitado, mas eu era jovem demais para compreender a ironia da palavra “benigno”, pois ela nunca mais seria a mesma.
Ainda tenho imagens vívidas dela antes da paralisia. Ela sempre foi gregária e recebia muitas visitas. Com freqüência passava horas preparando canapés e enchendo a casa de flores, que colhia frescas no jardim cultivado ao lado da casa.
Selecionava as músicas populares da época e rearrumava a mobília a fim de abrir espaço para que os amigos pudessem se entregar à dança. Na realidade, era minha mãe quem mais gostava de dançar.
Hipnotizada, eu a observava se vestir para as festividades noturnas. Mesmo hoje em dia ainda me lembro de nosso vestido favorito, com sua saia preta e corpete de renda azul-marinho, o contraste perfeito para seu cabelo louro. Fiquei tão emocionada quanto ela, no dia em que trouxe para casa uns sapatos de salto alto de renda preta e, naquela noite, minha mãe certamente era a mulher mais bonita do mundo.
Eu acreditava que ela podia fazer qualquer coisa, fosse jogar tênis (ganhara campeonatos na universidade), costurar (fazia todas as nossas roupas), tirar fotografias (ganhou um concurso nacional), escrever (era colunista de um jornal) ou cozinhar (especialmente pratos espanhóis para meu pai).
Agora, apesar de não poder fazer nenhuma dessas coisas, ela encarava sua doença com o mesmo entusiasmo que tinha em relação a tudo o mais.
Palavras como “deficiente” e “fisioterapia” tornaram-se parte de um estranho mundo novo no qual entramos juntas, e as bolas de borracha para crianças que ela se esforçava para apertar adquiriram um simbolismo que jamais haviam possuído.
Gradualmente, passei a ajudar nos cuidados com a mãe que sempre cuidara de mim. Aprendi a cuidar do meu próprio cabelo – e do dela. Eventualmente, tornou-se rotina levá-la na cadeira de rodas até a cozinha, onde ela me ensinava a arte de descascar cenouras e batatas e como esfregar alho e sal e pedaços de manteiga em uma boa carne assada.
Quando, pela primeira vez, ouvi falarem em uma bengala, opus-me:
— Não quero que a minha linda mãe use uma bengala!
Mas a única coisa que ela disse foi:
— Não é melhor você me ver andando com uma bengala do que não me ver andando de maneira alguma?
Cada conquista era um marco para nós duas: a máquina de escrever elétrica, o carro com câmbio e freio automáticos, sua volta à universidade, onde se diplomou em Educação Especial.
Ela aprendeu tudo o que podia sobre as pessoas com deficiências e acabou fundando um grupo ativista de apoio chamado “Os Incapacitados”. Certo dia, sem ter falado muito de antemão, ela me levou e a meus irmãos a uma reunião dos Incapacitados. Eu nunca vira tantas pessoas com tantas deficiências. Voltei para casa, silenciosamente introspectiva, pensando em como nós realmente tínhamos sorte.
Ela nos levou muitas vezes depois disso e, eventualmente, a visão de um homem ou uma mulher sem pernas ou braços não nos chocava mais. Minha mãe também nos apresentou a vítimas de paralisia cerebral, enfatizando que a maioria era tão inteligente quanto nós, talvez mais. E nos ensinou a nos comunicarmos com os retardados mentais, mostrando como eles eram freqüentemente mais afetuosos, comparados às pessoas normais. Durante tudo isso, meu pai continuou a amá-la e apoiá-la.
Quando eu estava com onze anos, minha mãe me contou que ela e papai iriam ter um bebê. Muito depois, eu soube que seus médicos tinham insistido para que ela fizesse um aborto (terapêutico) – uma opção à qual ela resistiu veementemente.
Logo, éramos mães juntas, já que virei mãe adotiva de minha irmã, Mary Therese.
Em pouquíssimo tempo aprendi a trocar fraldas, banhá-la e alimentá-la. Ainda que mamãe tenha mantido a disciplina maternal, para mim foi um passo gigantesco além da brincadeira com bonecas.
Um momento se destaca mesmo hoje em dia: o dia em que Mary Therese, na época com dois anos, caiu e esfolou o joelho, abriu-se em prantos e passou correndo pelos braços estendidos de minha mãe para os meus. Tarde demais, eu vislumbrei a faísca de dor no rosto de mamãe, mas tudo o que ela disse foi:
— É natural que ela corra para você, pois você toma conta dela tão bem. . .
Como minha mãe aceitava sua condição com tanto otimismo, raramente me senti triste ou ressentida. Mas nunca irei esquecer o dia em que minha complacência foi destruída.
Muito tempo depois da imagem de minha mãe em salto agulha ter se dissipado da minha consciência, houve uma festa em nossa casa. A essa altura eu era adolescente, e vi minha sorridente mãe sentada na lateral, olhando seus amigos dançarem, e fui atingida pela cruel ironia de suas limitações físicas.
Subitamente, fui transportada de volta à época de minha primeira infância e a visão de minha mãe dançando radiante estava novamente diante de mim.
Imaginei se mamãe se lembraria também. Espontaneamente, andei em sua direção e então vi que, apesar de estar sorrindo, seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Corri para fora do aposento e para o meu quarto, enterrei meu rosto no travesseiro e chorei copiosamente – todas as lágrimas que ela jamais chorara. Pela primeira vez, eu me enraiveci contra Deus e contra a vida e suas injustiças para com a minha mãe.
A lembrança do sorriso brilhante de minha mãe permaneceu comigo. Daquele momento em diante, enxerguei sua habilidade de superar a perda de tantas batalhas anteriores e seu ímpeto em olhar para a frente – coisas que eu tomava por certas – como um grande mistério e uma poderosa inspiração.
Quando eu estava crescida e comecei a trabalhar com o sistema penal, mamãe se interessou em trabalhar com os prisioneiros. Ela telefonou para a penitenciária e pediu para dar aulas de Redação Criativa para os detentos. Lembro-me de como eles se amontoavam em volta dela sempre que ela chegava e pareciam se a agarrar a cada palavra sua, como eu fizera na infância.
Mesmo quando não podia mais se deslocar até a prisão, ela freqüentemente se correspondia com vários detentos.
Um dia pediu-me para enviar uma carta para um prisioneiro, “Waymon”. Perguntei se poderia lê-la antes e ela concordou, sem perceber, eu acho, o quanto aquilo seria revelador para mim. Dizia:
“Quero que saiba que tenho pensado em você com freqüência desde que recebi sua carta. Você mencionou como é difícil estar preso atrás das grades e meu coração se une ao seu. Mas quando você disse que eu não imagino o que é estar na prisão, senti-me compelida a dizer-lhe que está errado.
Existem diferentes tipos de liberdade, Waymon, diferentes tipos de prisões. Às vezes, nossas prisões são auto-impostas.
Quando, com a idade de trinta e um anos, levantei-me um dia para descobrir que estava completamente paralisada, senti-me em uma armadilha – dominada pela sensação de estar presa dentro de um corpo que não mais me permitiria correr através de uma campina, dançar ou carregar minha filha nos braços.
Fiquei deitada ali durante muito tempo, lutando para chegar a um acordo com minha enfermidade, tentando não sucumbir em autopiedade. Perguntei-me se, na verdade, valeria a pena viver nessas condições, se não seria melhor morrer.
Pensei a respeito desse conceito de prisão, pois me parecia que havia perdido tudo o que importava na vida. Eu estava próxima do desespero.
Mas, então, um dia me ocorreu que, na realidade ainda havia opções abertas para mim e que eu tinha a liberdade de escolher entre elas. Será que eu iria sorrir quando visse meus filhos de novo, ou iria chorar? Iria zangar-me em Deus, ou iria pedir que Ele fortalecesse minha fé?
Em outras palavras, o que eu iria fazer com o livre-arbítrio que Ele havia me dado e que ainda era meu?
Tomei a decisão de lutar, enquanto estivesse viva, para viver o mais plenamente possível, para procurar tornar minhas experiências aparentemente negativas em experiências positivas, procurar formas de transcender minhas limitações físicas expandindo minhas fronteiras mentais e espirituais.
Eu podia escolher entre ser um exemplo positivo para meus filhos ou podia murchar e morrer emocional assim como fisicamente.
Existem muitos tipos de liberdade, Waymon. Quando perdemos um tipo de liberdade, temos que simplesmente procurar por outro. Você e eu somos abençoados com a liberdade de escolher entre bons livros, que iremos ler, quais deixaremos de lado.
Você pode olhar para as suas grades ou pode olhar através delas. Você pode ser um exemplo para prisioneiros mais jovens ou pode se misturar com os encrenqueiros.
Você pode amar a Deus e buscar conhecê-Lo ou pode virar as costas para Ele.
Até certo ponto, Waymon, estamos nisso juntos. “
Quando finalmente terminei de ler a carta, minha visão estava borrada pelas lágrimas. Ainda assim, pela primeira vez, eu enxerguei minha mãe com clareza.
E eu a entendi.