Esta carta foi escrita há 120 anos por um desempregado cuja maior ambição era ser pintor, porém vendeu apenas um quadro em vida. O sobrinho deste homem passou-a a Humberto Borges, jornalista, numa tarde em Amsterdan. Ele a traduziu do francês e a publicou. É uma obra-prima tão valiosa quanto os quadros daquele homem no desvio chamado Vincent Van Gogh


Caro Theo:

Eu estou escrevendo para você com alguma relutância; não tendo escrito há tanto tempo por muitas razões. De certo modo você se tornou um estranho para mim e eu o mesmo para você, mais do que você possa pensar. Provavelmente eu não estaria escrevendo agora se você não tivesse dado motivo. Em Etten, soube que você mandou 50 francos para mim. Bem, eu aceitei, certamente com relutância, sentindo bastante melancolia, mas estou encurralado contra um muro de pedra, numa espécie de confusão. Como poderia ser de outra maneira ? Portanto, estou escrevendo para agradecer.

Involuntariamente eu me tornei uma espécie de personagem impossível e suspeito para a família. No mínimo, alguém em quem eles não confiam. Desta maneira, como eu poderia servir para alguém ?

Portanto, penso que é mais razoável manter uma distância conveniente. Deixo de existir para todos vocês.

A adversidade é para o homem o mesmo que a muda é para os pássaros. Alguém pode estar no tempo de muda para emergir renovado do sofrimento, mas isso não é absolutamente divertido e não deve ocorrer em público. A única coisa a fazer é se isolar. Assim seja. É muito difícil, agora, reconquistar a confiança da família, a qual não está livre dos preconceitos sobre as qualidades de ser bom tom e honorável. Mas não perco a esperança de conseguir uma compreensão cordial renovada entre nós. Um entendimento cordial é infinitamente melhor que mal-entendidos. Agora preciso aborrecê-lo com certas coisas abstratas, mas espero que seja paciente.

Eu sou um homem de paixões, capaz de fazer coisas mais ou menos extravagantes, das quais às vezes me arrependo. Nesses momentos, falo e me comporto impetuosamente, quando seria melhor ter paciência e esperar. Eu penso que as outras pessoas muitas vezes cometem os mesmos erros. O problema é orientar esses sentimentos para coisas boas. Por exemplo, para citar uma delas: eu tenho uma paixão mais ou menos irresistível por livros e quero estudar tanto quanto sinto necessidade de pão. Você certamente é capaz de entender isso. Na vizinhança de pinturas e outras obras de arte, tenho uma paixão violenta por elas, atingindo o pico do entusiasmo. Talvez você recorde que eu sei bem quem foi Rembrant, ou Millet, ou Jules Dupré, ou Delacroix, ou Millais, ou Mr. Maris. Agora eu não os tenho por perto. Contudo, naquela coisa chamada ALMA, que dizem nunca morrer, continua viva e procura para sempre. Portanto, em vez de dar lugar à saudade (da Holanda) eu disse para mim mesmo: “aquela terra ou a sua terra natal é qualquer lugar.” Assim, em vez de ficar no desespero, escolhi parte ativa da melancolia. Eu prefiro a aspiração e a procura, em vez da estagnação e do desespero. Atualmente aquele que está absorvido em tudo isso é excêntrico e comete pecados contra costumes e convenções sociais sem perceber. Isso é uma pena,quando é levado a mal. Vocês sabem que eu tenho negligenciado minha aparência e admito que é chocante. Mas veja aqui, a pobreza e a necessidade têm suas partes na causa, além do profundo desencorajamento. Isto serve, porém, algumas vezes, como uma boa maneira de assegurar a solidão necessária à concentração e ao estudo. Há mais de cinco anos, eu não sei exatamente quanto tempo, tenho estado sem emprego, vagando daqui para acolá. Você me disse que eu decaio, deterioro, que não faço nada. A verdade é que ocasionalmente ganho meu pedaço de pão e, ocasionalmente, recebo este pão dos amigos, por caridade. Vivo como posso, como a sorte me permite. Perdi a confiança de muitos, minhas finanças estão num estado triste, o futuro parece apenas bastante melancólico; eu deveria ter me saído melhor. É verdade que perdi tempo em termos de ganhar meu pão, que meus estudos estão numa condição sem esperanças, que minhas necessidades são infinitamente maiores que minhas posses. Mas é a isso que você chama de decadência , de não fazer nada ?

Mas devo ser coerente com o caminho que escolhi. Se eu não fizer nada, não estudar, não continuar procurando, estarei perdido. Então serei a dor. É assim que vejo a coisa. Talvez você pergunte qual o meu propósito definitivo ? Esse propósito se tornou mais definitivo. Devo desenvolver-me devagar, mas seguramente, como o traço duro se transforma em desenho e o desenho em pintura pouco a pouco, trabalhando sério, ponderando sobre a idéia, até fixá-la através do pensamento…

Uma das razões pela qual estou desempregado há anos é simplesmente porque minhas idéias são diferentes e os gentlemans dão lugares aos homens que pensam como eles. Não é meramente uma questão de roupas que eles têm hipocritamente censurado em mim. É algo mais sério, eu lhe asseguro. Você acha que eu mudei, que eu não sou mais o mesmo. O que mudou foi a minha vida, mas no íntimo, minha maneira de ver as coisas, minha maneira de pensar não mudaram muito. Se houve alguma mudança, é que penso, acredito e amo muito mais seriamente agora do que pensava, acreditava e amava antes. Você não deve pensar que eu renego as coisas – eu sou bastante fiel na minha infidelidade – e, embora mudado, eu sou o mesmo. Minha única ansiedade é saber que posso ser útil ao mundo. Eu me sinto aprisionado pela pobreza, excluído da participação em certos trabalhos e certas necessidades estão além de minhas posses. Eis a razão para eu ser algo melancólico. Então, sinto um vazio onde deveria haver amizade, um terrível desencorajamento corroendo a verdadeira energia moral. E o destino parece erguer uma barreira diante dos instintos de afeição e uma chocante inundação de desgosto envolve a gente. Por quanto tempo, meu Deus ????

Talvez haja uma grande chama da nossa alma , talvez ninguém mais venha se aquecer junto dela e o passante seja apenas uma pluma de fumaça saindo da chaminé e seguindo seu caminho. Mas alguém deve zelar por esse fogo interior, temperando a si mesmo; esperar pacientemente pela hora em que outra pessoa sente-se junto a esse fogo, talvez para ficar. Deixe que aquele que acredita em Deus possa esperar pela hora em que isso aconteça , mas por enquanto parece que essa coisa está indo muito mal comigo: e tem sido assim ppor um tempo considerável. Talvez continue assim no futuro. Mas pode ser que um dia as coisas corram bem. Se as minhas idéias são impossíveis ou infantis, eu espero poder escapar delas. Não quero nada melhor. Mas é isso que penso aproximadamente a respeito do assunto. Em “Um Filósofo no Telhado”, de Souvestre, você saberá como um homem do povo, um simples e miserável trabalhador imagina o seu próprio país. Talvez você nunca tenha pensado no seu país como ele realmente é. É tudo a sua volta, tudo o que te alimentou, o que te fez crescer, tudo o que você amou; os campos que você viu, aquelas casas, aquelas árvores, aquelas garotas que passavam sorrindo -isso é o seu país. É também as leis que o protegem, o pão que compensa o trabalho, as palavras que dizes, a alegria e a dor do povo que chegam a ti e as coisas entre as quais vives. Vejas, tu o respiras por toda parte. Imagina todos os direitos e deveres, afeições e necessidades, memórias e gratidões; junta tudo em um só nome e este será o nome do teu país. Desta maneira eu penso que tudo de realmente bom e belo, de fundo moral e espiritual e de sublime beleza no homem e em seus trabalhos, vem tudo de Deus. E tudo de ruim, de mal e errado, não vem de Deus e Deus não aprova isso. Mas eu sempre pensei que a melhor maneira de conhecer Deus é amar muitas coisas. Amar um amigo, uma esposa, alguma coisa. Seja lá o que você goste e estará no caminho de saber mais sobre Ele. É isto o que digo a mim mesmo. Mas deve-se amar com profunda e sublime simpatia, com força e com inteligência e deve-se sempre tentar saber mais profundamente. Isso leva a Deus; leva a uma fé irremovível. Eu escrevo mais ou menos à esmo tudo o que me aflui à pena. Eu me sentiria bastante contente se você pudesse ver em mim alo mais que um desocupado. Há duas espécies de inatividade, as quais têm grandes contrastes entre si. Existe o desocupado por indolência, por falta de caráter, pela essência de sua natureza. Se você quiser, pode me tomar por um deles. Mas existe o homem que é desocupado a despeito de si próprio, que interiormente é consumido por uma grande necessidade de ação, mas não faz nada porque para ele é impossível fazer qualquer coisa, porque ele se sente prisioneiro em uma jaula, porque ele não possui o que precisa para ser produtivo, porque as circunstâncias o levam inevitavelmente a esse ponto.

Um pássaro preso na primavera sabe muito bem que deve servir para algum fim; ele está consciente de que há algo que deve fazer, mas não pode. O que é isso ? – Ele quase não consegue lembrar. Então algumas idéias vagas lhe ocorrem; diz a si mesmo que os outros constroem ninhos e poem ovos fazendo nascer outros pequeninos e ele bate a cabeça contra as barras da gaiola. A prisão permanece e o pássaro é enlouquecido pela angústia. ..

Você sabe o que liberta alguém do cativeiro ? É toda a profunda e séria afeição. Amar, ser amigo, ser irmão. Eis o que abre a prisão, por alguma força mágica. Sem isso permanece a clausura. A prisão é também o preconceito, o mal entendido, a ignorância, a desconfiança, a falsa vergonha…

Mas pra falar de outras coisas, se eu por acaso puder fazer algo por você, quero que saiba que estou à sua disposição. Como aceitei o que você me deu, gostaria de que você recorresse à mim, caso necessite de algum serviço. Isto me faria feliz; seria uma prova de confiança. Nós estamos bastante separados, talvez tenhamos visões diferentes sobre algumas coisas mas, apesar de tudo, talvez chegue a hora em que possamos ser de alguma valia um para o outro. Agora aperto sua mão, agradecendo novamente pelo auxílio que você me deu.

Sempre seu,

Vincent

O que você achou desta postagem?

Clique nas estrelas

Média da classificação 0 / 5. Número de votos: 0

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar esta postagem.